O jornal “O Estado de S.Paulo”, edição de 24 de fevereiro último, trouxe com o destaque do chamado “espaço aberto”, artigo de autoria de Dom Antônio Augusto Duarte, bispo auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro, onde é discutida a questão aberta pela ONG “Projeto Legal”, sobre a necessidade de se conceder proteção à vida de um jovem que participou da tragédia que vitimou o menino João Hélio, num assalto ocorrido há cerca de três anos em uma das ruas da cidade do Rio de Janeiro. Essa criança foi arrastada, presa pelo cinto de segurança do qual não conseguira desvencilhar-se quando tentava sair do carro que fora tomado de sua mãe pelos assaltantes, encontrando a morte decorrente do martírio a que foi submetido ao ser arrastado pelas ruas da cidade por um longo percurso.
Um dos assaltantes, por ser menor de 18 anos, foi submetido à internação pelo prazo de três anos, findos os quais foi posto em liberdade.
Sentindo-se ameaçado de morte, recorreu aos préstimos da ONG de início mencionada, solicitando a condição de pessoa a ser protegida em programa próprio, de proteção à criança e adolescente.
O articulista do “Estadão” rebela-se contra a tomada da medida solicitada, sob o argumento de que é preciso respeitar “o sofrimento gravado a fogo na mente e no coração dos pais e dos familiares, dos amigos e dos concidadãos” da pequena vítima.
Ora, em quaisquer condições ou circunstâncias, a vida é direito humano fundamental. Somente pode ser tirado em circunstâncias muito especiais, como em legítima defesa, em estado de necessidade ou no estrito cumprimento do dever legal, como está escrito no Código Penal.
Por mais que se deva respeitar a memória da vítima e o sofrimento de seus pais, parentes e amigos, não se pode esquecer que, mesmo os delinqüentes têm direito à vida e à sua proteção.
Negar esse direito é expor a pessoa – seja delinqüente ou não – à vingança privada, ao “0lho por olho; dente por dente”, do Velho Testamento.
No mesmo sentido, manifestou-se o colunista do jornal “Folha de S.Paulo”, Renato Mezan (Suplemento “Mais”, de 28 de fevereiro último): entendo, diz ele, que o esforço para garantir as liberdades individuais após a ditadura teve como efeito colateral ajudar a proteger criminosos, citando como exemplo o lamentável episódio de início mencionado. Não é possível concordar com essa afirmativa.
Segundo o ordenamento jurídico vigente no Brasil, os menores de 18 anos quando cometem atos infracionais são submetidos à legislação especial, no caso o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual estabelece para as infrações graves praticadas por adolescentes a internação em estabelecimento especial pelo prazo de três anos. É o que consta dos artigos 121, e seguintes, do ECA, os quais fixam o tempo de internação “que deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração” (artigo 123).
É preciso dizer, neste passo, que ninguém de algum bom senso ignora o que sejam as nossas instituições encarregadas da internação de menores. Péssimas instalações e pessoal inteiramente despreparado para o atendimento de adolescentes, não obstante prescrições taxativas a respeito, como se vê do disposto no artigo 124, ainda do ECA.
São incontáveis as denúncias por maus tratos a adolescentes submetidos à privação de liberdade: espancamentos, crueldade e até mesmo eliminações. Na verdade, o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda não saiu das prateleiras das estantes. Temos um arremedo de “justiça de menores”, relegada ao limbo das obrigações do Estado.
Pois bem, ao invés de confrontarmos direitos legais, é importante que, reconhecendo a anterioridade dos direitos humanos à intervenção do Estado, tenhamos bem claro, nas afirmações da encíclica Pacem in Terris, citada pelo ilustre articulista, “todo ser humano é pessoa, sujeita a direitos e deveres. Direito à existência e a um digno padrão de vida”.
É certo que João XXIII adverte que “é preciso obedecer antes a Deus do que aos homens”. “A lei humana, adverte, tem valor de lei enquanto está de acordo com a reta razão: derivando, portanto, da lei eterna”. É bem de ver que, no caso, quando se pede a proteção da vida, segundo determinados preceitos legais, se está atuando segundo a vontade divina, desde que a vida é considerada o bem supremo.
Mas vamos adiante.
Segundo ensina João Paulo II in Evangelium Vitae, “o homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito além das dimensões de sua existência terrena, porque consiste na participação da própria vida de Deus”. “A sublimidade desta vocação, pontua o mesmo Papa, revela a grandeza e o valor precioso da vida humana”.
Prosseguindo, assinala ainda João Paulo II, “o mandamento não matarás estabelece, pois, o ponto de partida de um caminho de verdadeira liberdade, que nos leva a promover ativamente a vida e desenvolver determinadas atitudes e comportamentos a seu serviço: procedendo assim, exercemos nossa responsabilidade para com as pessoas que nos estão confiadas, e manifestamos, em obras e verdade, o nosso reconhecimento a Deus pelo grande dom da vida “(cf. SL 139/138, 13 e 4).
Na mesma linha, manifesta-se o colunista de a “Folha de S. Paulo”. Diz ele “que um assassino confesso, já beneficiado por uma norma que o liberta depois de um tempo irrisório, não tem por que ser incluído num programa cuja finalidade é bem outra”. Isto é ignorar o quanto irrisório é passar três anos numa instituição para menores e, por outro lado, desconhecer a finalidade dos programas de proteção à vida.
Com uma ressalva de quem não assume a responsabilidade de suas conclusões, deixa o aludido colunista bem claro que não pensa que o rapaz deva ser eliminado, pois se trata de um cidadão e tem a mesma proteção que qualquer outro brasileiro.
É evidente a contradição, pois, se “se trata de um cidadão” – como afirma o próprio colunista – tendo ele a proteção do Estado, não se pode negá-la com uma interpretação restritiva das normas que cuidam da matéria e que não podem ser circunscritas tão somente aos bons. É dever do Estado velar pela segurança de tantos quantos nele habitam, mormente quando existem fundados motivos para acreditar-se na presunção de uma eliminação. O Estado não está limitado a proteger inocentes, mas a toda e qualquer pessoa ameaçada em sua integridade física ou moral
Não se pode dizer que um assassino é um assassino e pronto. No Brasil existe uma garantia constitucional que impede que menores de 18 anos sejam submetidos à lei penal, impondo a eles tratamento especial, para que sejam devolvidos à sociedade como verdadeiros cidadãos. Acontece que o Estado negligencia no cumprimento de seus deveres para com nossas crianças ou adolescentes, deixando de assisti-los a tempo de impedir que se transformem em marginais e infratores. E, por igual, depois de abandoná-los. Não é apenas atrás de grades bem resistentes que se pode educar.
Não é preciso ir mais longe, pois, se a vida é o bem supremo, não podemos tolerar, por ação ou omissão, que ela se perca. A proposta de deixarmos o infrator sem proteção para que ele receba a contrapartida do que cometeu não pode ser aceita, pois se trata de verdadeira conivência com um crime a ser perpetrado. Se matou, deixemos que seja morto.
Isto, evidentemente, não é conclusão a que se possa chegar nos ensinamentos de Jesus Cristo. É uma volta à barbárie.
Lembremo-nos, por último, que diante do temor de Caim, que acabara de assassinar seu irão Abel, de ser morto pelo primeiro que encontrasse, o Senhor respondeu: “Não. Se alguém matar Caim será castigado sete vezes mais” (Genesis, 4).
Incabível, também, a posição de quem quer desconhecer o papel importante das Organizações não Governamentais na defesa dos direitos humanos e prega o castigo, ainda que dele resulte a morte, ao invés do perdão.
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