segunda-feira, 26 de julho de 2010

Não há democracia sem acesso à Justiça

A falta de acesso à Justiça, em especial nas faixas da pobreza e da marginalidade, é uma das violações de direitos humanos que, lamentavelmente, vem sendo esquecida e, o que é mais grave: não obstante alguns poucos tenham consciência das omissões nessa área, ela continua sendo desprezada, como se Justiça fosse algo inatingível para o comum dos mortais. Estamos em plena campanha eleitoral para a presidência da República e governos dos Estados, sem que este assunto de tanta relevância seja objeto dos planos de governo.

Na primeira legislatura dos anos 1.990, apresentei à consideração da Câmara dos Deputados um projeto de reforma dos órgãos da Justiça, para torná-los mais próximos dos jurisdicionados, determinando uma descentralização de seus vários setores – o que por si só seria suficiente para tornar os serviços judiciários mais ágeis e eficientes.

Esse projeto, na sua tramitação na Câmara e no Senado – muito embora não se negasse a necessidade de operar-se uma reforma na estrutura do Poder Judiciário – desaguou num substitutivo que resultou em alterações sem o menor significado, quando não se constituíram em retrocesso, tendo em vista conquistas já alcançadas. Diante disso, e já estando afastado de meu mandato de deputado, pedi que o projeto não mais fosse identificado com o meu nome. Promulgadas no que se chamou de primeira fase, em dezembro de 2.004, as emendas não tiveram, até hoje, qualquer resultado prático, mesmo porque não se quis tocar em pontos fundamentais para o bom andamento dos procedimentos perante juízos e tribunais. O que mais se fez, foi a criação do Conselho Nacional de Justiça, com competência muito pouco abrangente. No capítulo das justiças militares estaduais, ao invés de caminhar para sua extinção, adotou-se o contrário, com o fortalecimento desse aparelho esdrúxulo; de uma justiça corporativa a contemplar um dos setores da polícia, a militar, por ser força auxiliar e de reserva do Exército, quando, na verdade a sua atuação no campo da segurança pública seja eminentemente civil.

Nessa mesma linha, a instituição de uma competência federal para violações graves dos direitos humanos não passou de mais um desses dispositivos que não pegam. São tantas as dificuldades para se obter a transferência da competência estadual para a federal que, até hoje, não obstante inúmeros pedidos tenham sidos feitos, nenhum deles obteve êxito, pois os procedimentos previstos já se constituem, por si só, em obstáculo para que se obtenha êxito na transferência.

Para piorar, permite-se a juízes que não residam nas comarcas de que são titulares, contrariando norma tradicional e da maior importância, como se verá a seguir, da organização judiciária brasileira, agora praticamente abolida.

Todos sabemos das dificuldades para que se consigam alterações que possam tocar, ainda que de leve, nos poderes dos magistrados, sejam de primeira, sejam de segunda instâncias. O que se quer, diante de um silêncio abrangente, é a manutenção do sistema atual, pois do modo pelo qual as coisas vêm sendo postas, a “majestade” dos juízes não corre qualquer risco, ainda que se trate de uma majestade desgastada, completamente fora da realidade.

Mas esse conformismo com um sistema que não mais funciona está pagando altíssimo preço, que começa pela descrença na Justiça e termina na criação de mecanismos extrajudiciais, para uma distribuição equivocada da Justiça.

Criaram-se varas especiais de pequenas causas, num entendimento capitalista da Justiça, para a qual não devem existir causas grandes ou pequenas, segundo aferimento econômico, mas, simplesmente, causas a serem julgadas. Hoje em dia, essas varas que se destinavam a um rápido e eficiente processo, encontram-se com o mesmo volume das varas comuns, com pautas que vão além de ano, perdendo, portanto, as finalidades que se objetivava, de uma solução imediata de conflitos de menor valor econômico.

Ora, quem já foi juiz ou promotor em comarcas de menor movimento, com cerca de vinte ou trinta mil habitantes, sabe que, nessas hipóteses, é possível fazer Justiça rápida e eficiente para grandes e pequenas causas, criminais e civis. Nesse quadro, o juiz, o promotor e, nos dias de hoje, o defensor público, podem atuar amplamente, extraindo a realidade da verdade processual. Passam eles a conhecer as partes, em saber o que as leva para uma luta judicial, seus antecedentes e suas intenções. Tudo isso desaparece quando passam a atuar nas grandes cidades, em especial, em São Paulo. O número de processos que lhes são encaminhados não permite que se faça o exame necessário de nenhum deles e a justiça passa a ser uma loteria.

Em São Paulo, por exemplo, a Justiça está manietada nos fóruns centrais, da Barra Funda, para causas criminais e da Clovis Bevilacqua para causas cíveis, e em um número insignificante de fóruns chamados distritais.

Vejamos como atua a Justiça de São Paulo. Tomamos o exemplo de São Paulo, por ser a cidade mais populosa do País. Mas o que ali acontece, vale para qualquer grande cidade brasileira. Pois bem, num processo criminal, onde a vítima e testemunhas residem na periferia, a mais de vinte quilômetros do centro, onde se situam os fóruns, para que sejam ouvidas, podemos estimar que sejam necessários mais de três ou quatro anos. As testemunhas não são encontradas, quando o são chegam atrasados pelas dificuldades de transporte, adoecem e não podem comparecer, o que determina a designação de novas e novas audiências, que devem atender aos espaços existentes em agendas sobrecarregadas.

Assim, um processo, qualquer que seja, do mais simples ao mais complexo, se estende por vários anos e é submetido a vários juizes e a vários promotores. Juízes e promotores para decidir qualquer incidente em geral não lêem os autos, mas apenas o último despacho, com o que são cometidos enganos que levam a delongas e mais delongas. De certa maneira, o juiz que prolata uma sentença é o terceiro ou quarto juiz que passa pelo processo e que somente conhece o que está escrito –por vezes mal escrito – no processo. Condena ou absolve um réu sem nunca tê-lo visto.

Não seria mais racional criar-se um juízo para o atendimento de no máximo trinta ou quarenta mil pessoas? As sentenças seriam lavradas com maior lastro e maior rapidez, com coerência e eficiência, pois o julgador saberia o que, por que e a respeito do que e de quem estaria decidindo. Só com isso teríamos diminuídos os recursos para as instâncias superiores, pelo simples fato de que as decisões passariam a representar a verdade real e por isso mesmo seriam respeitadas como o ponto final de um litígio.

São Paulo tem mais de cem circunscrições policiais e nenhum distrito judiciário com competência plena. Com uma população de cerca de quinze milhões de habitantes. Para um bom atendimento nas esferas criminal e cível, deveríamos contar, pelo menos, com quinhentos distritos judiciários, com juízes, promotores e defensores públicos, e, bem assim, com a devida estrutura cartorária. Já estamos ouvindo: mas isso vai custar muito caro. É impossível. Estamos esquecidos de que bilhões de reais vão ser gastos na construção da usina de Belo Monte. E aí não se discute custo. Os “interesses” são muitos e precisam ser atendidos.

Aliás, se pesarmos as coisas numa balança, iremos constatar que o custo-benefício da descentralização da Justiça de primeira instância justificará, por si só, uma tomada de posição nesse sentido.

Em São Paulo, poderíamos começar com a utilização dos distritos policiais já existentes, transformados em unidades judiciárias e de segurança pública. Com isso, já teríamos cobertura para, pelo menos, metade daquilo que é julgado imprescindível para a descentralização.

É evidente que a descentralização da primeira instância levaria à igual providência na segunda, acabando-se com os tribunais ou procuradorias de justiça gigantes, com mais de trezentos membros. Cada região com seu Tribunal, com sua procuradoria de Justiça. Órgãos pequenos, porem mais ágeis e com poder correcional a ser posto em ação nos casos de inadimplência.

Tenha-se em vista que há muitos anos, no governo do professor Carvalho Pinto, em São Paulo, apresentou-se, com a participação ampla do Poder Judiciário paulista, projeto de lei à Assembléia Legislativa, com a criação de cinqüenta distritos judiciários, contemplando, numa mesma unidade, polícia, justiça e até uma pequena prisão. Seu sucessor e adversário político não quis dar andamento a esse projeto.

Estagnados desde então, diante de um crescimento de demanda incompatível com a organização existente, continuamos afogados num crescente mar de processos mal julgados e que só irão ser solucionados anos e anos depois, nos tribunais superiores, sem que se possa alcançar a verdadeira Justiça. Hoje, as demandas acabam no Superior Tribunal de Justiça ou mais além, no Supremo Tribunal Federal, na prática com quatro demorados julgamentos.

Para maior agilidade, além da descentralização, medidas processuais devem ser adotadas, como a oralidade dos processos, a sua imediatidade nos casos criminais, a redução dos recursos, o que somente será possível se tivermos sentenças respeitadas por refletirem a realidade do direito casado aos fatos. Como diziam os romanos: dar a cada um o que é seu.

Também a segunda instância tem de ser rearrumada. As decisões devem esgotar-se, quando se tratar de matéria de fato, nos tribunais regionais. Ao Superior Tribunal de Justiça deveriam ser admitidas somente as causas em que houvesse discussão de matéria de direito. O Supremo Tribunal Federal deveria ser o guardião da Constituição, a velar pela pureza das instituições fundamentais que qualificam a democracia. A Justiça Eleitoral não deve ser permanente e constituir-se de juízes togados. Conselhos de cidadãos estarão mais aptos a decidir sobre candidatos e candidaturas, tendo em vista, sobretudo, a vida pregressa daqueles que pretendem participar da vida das instituições.

Enfim, sem acesso e sem agilidade não poderemos pensar em democracia, cujas bases se assentam em uma única palavra: Justiça.

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